JollyRoger 80´s

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sexta-feira, 10 de julho de 2020

"Narradores de Javé". Diálogos entre Cinema, Arquivologia e História

O presente texto tem por objetivo analisar o filme Narradores de Javé e por meio dos desdobramentos da trama estabelecer diálogos com o saber Arquivístico. O Cinema é uma importante fonte de pesquisa porque são representações do contexto histórico, social e político da época de sua produção.

Existem paralelos interessantes entre o produto fílmico artístico e os Arquivos. Um determinado arquivo quando avaliado e conservado acaba por refletir as transformações ocorridas no interior de uma empresa ou instituição. Assim como pode servir de base para o conhecimento do contexto histórico de um período, de um Governo e de um país, por exemplo. Um filme (tanto o ficcional como o documentário) também deve ser considerado um tipo de documento.

Narradores de Javé é uma produção brasileira de 2003 dirigido por Eliane Caffé, com roteiro desta em parceria com Luis Alberto de Abreu. A película, estrelada por José Dumont conta com muito bom humor o drama dos moradores do pequeno vilarejo de Javé. A população de Javé está preocupada com o iminente desaparecimento de sua cidade, porque está sendo planejada pelo Governo a construção de uma hidrelétrica nas redondezas, o que deixará Javé submersa.

A única esperança para a sobrevivência da cidade seria se ficasse comprovada sua condição de patrimônio histórico. E que isso ficasse atestado com base na criação de um documento que, como citado por um dos personagens, tivesse "valor científico". 

Fica estabelecido através de uma assembléia dos moradores que a história de fundação da cidade será escrita, documentada. Dessa maneira ficaria comprovado o valor histórico e a importância inegável de Javé.

Como praticamente todos os moradores não sabem ler e escrever, a responsabilidade para o grande feito recai sobre os ombros (e mãos) do execrado Antônio Biá (José Dumont), que era um ex-funcionário do Correio e único morador letrado.

O filme apresenta vários temas que têm relação com a História, como por exemplo: a história oral, o caráter de cientificidade, a problemática entre os limites entre a construção do fato histórico e o artefato literário. 

Com a ameaça de inundação de suas terras os moradores precisam "render-se" ao uso da escrita. A escrita é o modo, o saber especializado de comunicação e de uso político que Javé terá que se enquadrar para se fazer presente frente ao Estado.

Antônio Biá deve então registrar as histórias contadas oralmente pelos moradores. Histórias muitas vezes confusas, fantasiosas, que se complementam ou se refutam. "Quem conta um conto, aumenta um ponto". E é isso o que acontece quando os habitantes da cidadezinha dão seus relatos. 

A História de Javé é contada ligeiramente diferente e sob diversas perspectivas. Algumas privilegiando uns ou outros supostos personagens icônicos. A história de fundação da cidade é permeada por acontecimentos gloriosos como quase todo mito de formação de povos e países.


Um morador dá muita importância à uma figura histórica masculina supostamente responsável da fundação da cidade. Já uma moradora discorda desse relato, pois enxerga mais relevância em uma mulher, que na versão dela dos fatos, teria sido crucial na criação de Javé.

Essa sequência do filme é uma das mais interessantes, pois o que se segue não representa uma tentativa de se fazer humor com a ingenuidade de um morador de uma longínqua cidade do interior. Pelo contrário, mas uma crítica à tendência das pessoas analisarem os fatos históricos de maneira parcial, com um olhar viciado, tendencioso de maneira a privilegiar seus pontos de vista. 

Ao mesmo tempo, é uma forma de expressar que a História realmente pode (e deve!) ser analisada e (re)construída por meio de diferentes olhares e vozes. E esse é um dos grandes desafios atuais, debater a História de maneira plena e não se fechando em grupos ideológicos e militâncias fanáticas e limitadas. 


É realizado um trabalho de memória e de história oral.[1] Os moradores de Javé apelam para o morador que detém o poder simbólico da escrita e do documento. Na contemporaneidade, ambas as práticas, leitura e escrita não são dominadas completamente por muitas pessoas. Nas sociedades diversas existem grupos que se apresentam mais através da expressão oral e visual; outros na escrita. 

Ou seja, a escrita não teria alcançado toda a gama de possibilidades de expressão humana. O dia a dia de trabalhadores, por exemplo, pode transparecer por meio de fotografias do seu cotidiano. Os moradores tentavam conferir legitimidade aos fatos apresentando fotografias de antepassados e seus objetos pessoais. 

Em certo momento os engenheiros responsáveis pela Hidrelétrica gravam com uma filmadora depoimentos emocionados dos moradores. Dessa forma, com o uso de tecnologias, toda aquela oralidade foi registrada e se configura em documento escrito e audiovisual.

Portanto, o filme Narradores de Javé é um produto cultural que possibilita uma série de análises a respeito da cultura, política e identidades. O longa-metragem é difícil de ser definido quanto ao seu gênero e entende-se que qualquer tentativa pétrea de classificá-lo acabaria por limitar pontos de vista sobre a obra. 

Pretende-se com essa pequena análise tratar de alguns dos vários aspectos abordados na trama e contextualizá-los sob um olhar interdisciplinar entre História, cinema e arquivologia. O estudo das imagens é importante, pois o modo como as sociedades contemporâneas percebem o mundo está totalmente ligado aos chamados sistemas visuais.  



[1] A História Oral começou a ser utilizada nos anos 1950, após a invenção do gravador, nos Estados Unidos, na Europa e em países como México e Brasil. Foi um meio de ampliação do intercâmbio entre historiadores, antropólogos, cientistas políticos, sociólogos, pedagogos, teóricos da literatura, psicólogos e outros. De acordo com o apresentado no site do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas "A história oral é uma metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas gravadas com pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da história contemporânea.

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